segunda-feira, setembro 01, 2008

não deu pra ficar

Mãe,





ontem, depois que tu me deste boa-noite, a noite foi caindo densa e uma angústia forte foi surgindo, aumentando cada vez mais; e, para o meu desconforto, ficar naquele quarto se tornou um estado de tamanho estranhamento num crescente à galope; se eu te contar que voltar a conviver com os fantasmas que há muito haviam sumido... e que jurava por tudo: haviam migrado para outros quartos, de outras pessoas, bem longe dali, mas de repente eles apareceram, sorrateiros, e ficaram flutuando em minha volta. Não adiantava se quer fingir ignorar. eles estavam ali.
ver as minhas coisas intactas, os livros intocáveis, exatamente na fileira da leitura aguardada daquela época das Letras lá pela metade do curso, os sapatos dos passos de antes que iam a lugares inconfessos, as calças velhas de dormir que moldavam o meu outro corpo esguio, dobradas, quase do jeito que as tinha deixado quando eu era diferente, sim, quando eu era outra pessoa, acho que uma outra Mariana; sentir as coisas que eu sentia há mais de três anos atrás, os anseios, os medos, o afã pela liberdade nas noites no Bonfim, ou por alguma troca urgente di´algum eflúvio intelectual que ao menos me tricotasse o cérebro... e não deu. ficou quase insuportável ficar ali, não agüentei.
Me senti não apenas sozinha, mas com aquela sensação de pele arrancada pegando vento-norte que tu sabes bem como é, e, sinto, minha mãe, que redescobri a custa de sufocamento - que novidade - o preço de se ter a verve literária, que, se não colocada pra fora através do lirismo planejado, ou do soneto rimado, brota como o fungo no vácuo, nas frieiras pra ganhar vida e existir de alguma forma.
Se ao menos tu estivesses acordada, acho que seria bom, muito bom mesmo te ter por ali, te ver nebulosa, mas dentro da minha visão periférica.
Quando tomei a decisão, já estavas longe, (contudo não fui insensível em simplesmente sair dali, inclusive, acho que nunca fui insensível em toda minha vida, por mais que tenha alardeado, convicta, ser de ferro e fingir ser forte sangrando talhada por dentro depois de comer merda quando da separação daquele amor nefando) dei um boa noite do meu jeito, fui no teu quarto e que acalento meigo pro meu delírio, vi duas xipófogazinhas ali, iluminadas pela luz pardacenta do corredor, e senti a minha gata ronronante tão leve, agora tão tua, dormitando em cima de ti - quase uma pluminha, uma pena cinzenta como a extensão do teu corpo; e então lembrei da história do Homem do Algodão Doce que tinha acabado de parir.
Ah, mulher de Deus, não é fácil ter em si radares para espectros e ser assim - uma alma em carne-viva.
Sorry, não deu pra ficar e... acho, porque, no fundo, sei, se acaso ficasse, eu me tornaria um deles.